Cap. 13 - A Economia e Ética da Propriedade Privada - Hans-Hermann Hoppe



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A justificativa derradeira da
Ética da Propriedade Privada




Ludwig von Mises, em sua obra-prima Ação humana , apresenta e explica todo o corpo da teoria econômica como implícita na, e deduzível da, compreensão conceitual do significado da ação (além de algumas suposições gerais e explicitamente introduzidas sobre a realidade empírica em que a ação está a ocorrer). Ele chama esse conhecimento conceitual de "axioma da ação", e ele demonstra em que sentido o significado de ação do qual sua teoria econômica estabelece, por exemplo, valores, fins, meios, escolhas, preferências, lucro, prejuízo e custo, deve ser considerado um conhecimento a priori. Ele não é derivado de impressões de sentido, mas de reflexão (um indivíduo não vê ações e sim interpreta certos fenômenos físicos como ações!). E o mais importante, não há possibilidade dele ser invalidado por qualquer experiência seja qual for, porque qualquer tentativa de fazê-lo já pressupõe a existência de ação e compreensão por parte de quem age das categorias de ação (experimentar algo é, afinal de contas, uma ação intencional!).

Desta maneira, tendo reconstruído a economia como, em última análise, derivada de uma proposição verdadeira a priori, Mises pode alegar ter fornecido a fundação derradeira da economia. Ele denomina a então fundada economia de "praxeologia", a lógica da ação, de modo a enfatizar o fato de que as suas proposições podem ser definitivamente provadas pela virtude do indiscutível axioma de ação e as igualmente indiscutíveis leis do raciocínio lógico (como as leis de identidade e contradição)—completamente independente, assim, de qualquer tipo de teste empírico (como empregado, por exemplo, pela física).No entanto, embora sua ideia de praxeologia e sua construção de todo o corpo do pensamento praxeológico coloque ele entre os maiores da tradição ocidental moderna do racionalismo, Mises não acha que outra afirmação dessa tradição pode ser concretizada: a afirmação de que também existem fundações em questões éticas. De acordo com Mises não existe nenhuma justificativa final para proposições éticas da mesma maneira que existe uma para proposições econômicas. A economia pode nos informar se certos meios são ou não apropriados para realizar certos fins, no entanto se os fins podem ou não ser considerados justos pode tampouco ser decidido pela economia ou por qualquer outra ciência./Não existe justificativa para escolher um fim ao invés de outro. Em última instância, qual fim é escolhido é arbitrário de um ponto vista científico e é uma questão de capricho subjetivo, incapaz de ter qualquer justificativa para além do mero fato de simplesmente ser preferido.

Muitos libertários seguiram Mises neste ponto. Como Mises, eles abandonaram a ideia de um fundamento racional da ética. Como ele fez, esses libertários utilizam o máximo possível das proposições econômicas para provar que a ética libertária da propriedade privada produz um padrão de vida médio maior que qualquer outra ética e, como a maioria das pessoas prefere um padrão de vida alto a um baixo, o libertarianismo, consequentemente, se mostra altamente popular. Mas em última análise, como Mises certamente sabia, tais considerações podem apenas convencer alguém do libertarismo quem já aceitou o objetivo "utilitarista" de maximização da riqueza geral. Para aqueles que não compartilham desse objetivo, eles não tem nenhuma força convincente. Assim, em última análise, o libertarianismo baseia-se em nada mais do que um ato arbitrário de fé.

A seguir eu esboçarei um argumento que demonstra porque essa posição é insustentável, e como a ética lockeana de propriedade privada essencialmente pode ser derradeiramente justificada. Na realidade, esse argumento apoia a posição de direitos naturais do libertarianismo como defendida por outro mestre pensador do movimento libertário moderno, Murray N. Rothbard - principalmente em seu Ética da Liberdade . No entanto, o argumento que estabelece a justificativa derradeira da propriedade privada é diferente do normalmente oferecido pela tradição de direitos naturais. Em vez desta tradição, Mises e sua ideia de praxeologia e provas de praxeológicas, que fornecem o modelo.

Eu demonstro que somente a ética libertária de propriedade privada pode ser justificada argumentativamente, porque isso é a própria pressuposição praxeológica da argumentação; e qualquer proposição ética não libertária está violando essa preferência demonstrada. Tal proposição pode ser feita, é claro, mas seu conteúdo proposicional iria contradizer a ética para qual ele demonstrou uma preferência em virtude do próprio ato de elaborar proposições, i.e., pelo ato de engajar-se na argumentação como tal. Por exemplo, pode-se dizer "as pessoas são e sempre serão indiferentes no que diz respeito a fazer coisas", mas esta proposição poderia se desmentir pelo próprio ato de elaborar proposições, que na verdade iria demonstrar preferência subjetiva (de dizer isto ao invés de dizer outra coisa ou não dizer nada). Da mesma forma, as propostas éticas não libertárias são falseadas pela realidade de efetivamente propor tais éticas.

Para chegar a essa conclusão e entender sua importância e força lógica, duas ideias são essenciais.

Em primeiro lugar, deve-se notar que a questão do que é justo ou injusto — ou para esse assunto a questão ainda mais geral do que é uma proposição válida e o que não é — só surge na medida em que, eu sou, e outros são, capazes de trocar proposições, i.e., de argumentar. A questão não surge cara a cara com uma pedra ou peixe porque eles são incapazes de engajar-se em tais trocas e de produzir proposições ditas válidas. No entanto, se isto está correto — e não se pode negar que está sem contradizer a si mesmo, porque não se pode argumentar que não se pode argumentar — então qualquer proposição de ética, bem como qualquer outra proposição precisa ser capaz de ser validada por meios proposicionais ou argumentativos. (Mises, também, na medida em que ele formulava proposições econômicas, deve supostamente ter afirmado isso.) Na verdade, na produção de qualquer proposição, abertamente ou como um pensamento interno, demonstra-se a preferência pela disposição de manter-se nos meios argumentativos para convencer-se ou a outros de algo. Há então, trivialmente, nenhuma maneira de justificar nada, a menos que seja uma justificativa por meio de trocas proposicionais e argumentos. Não obstante, então deverá ser a derradeira derrota para uma proposição ética se alguém puder demonstrar que seu conteúdo é logicamente incompatível com a afirmação do proponente de que sua validade é verificável através de meios argumentativos. Demonstrar qualquer incompatibilidade equivale a uma prova de impossibilidade, e tal prova constituiria a derrota mais mortal possível no domínio do inquérito intelectual.

Em segundo lugar, deve-se notar que a argumentação não é constituída de proposições de livre flutuação, mas é uma forma de ação que exige o emprego de meios escassos; e que os meios dos quais uma pessoa demonstra preferir por engajamento em trocas proposicionais são os de propriedade privada. Para começar, ninguém poderia possivelmente propor nada, e ninguém poderia tornar-se convencido de qualquer proposta por meios argumentativos, se o direito de uma pessoa de fazer uso exclusivo de seu corpo físico não tivesse sido pressuposto. É esse reconhecimento mútuo do controle exclusivo sobre o próprio corpo que explica o carácter distintivo das trocas proposicionais que, enquanto podem discordar sobre o que foi dito, ainda é possível concordar pelo menos com o fato de que há desacordo. Também é óbvio que tal direito de propriedade sobre o próprio corpo deve justificar-se um priori, quem tentar justificar qualquer norma seja ela qual for já terá que pressupor o direito exclusivo de controle sobre o corpo como uma norma válida, simplesmente para dizer, "Proponho tal e tal". Qualquer um contestando esse direito iria ficar preso em uma contradição prática já que discutir já implicaria na aceitação da própria norma que ele estava disputando.

Além disso, seria igualmente impossível sustentar a argumentação para qualquer comprimento de tempo e depender da força proposicional do argumento de alguém se esse alguém não for autorizado a se apropriar, além do próprio corpo, de outros meios escassos através da ação homesteading (se utilizar deles antes que outro alguém o faça), e também se tais meios e os direitos de controle exclusivo sobre eles não forem definidos em termos físicos objetivos. Se ninguém tivesse o direito de controlar qualquer coisa de qualquer modo além do seu próprio corpo, então todos nós deixaríamos de existir e o problema de justificar normas simplesmente não existiria. Portanto, pela virtude do fato de estarmos vivos, direitos de propriedade sobre outras coisas devem ser pressupostos válidos. Caso contrário, ninguém que está vivo poderia argumentar.

Além disso, se uma pessoa não adquirisse o direito de uso exclusivo sobre tais bens por apropriação original, i.e., por estabelecer um link objetivo entre uma pessoa em particular e um recurso escasso em particular antes que qualquer outro tenha feito, mas, pelo contrário, se "atrasados" fossem assumidos como tendo reivindicado a propriedade sobre esses bens, então ninguém poderia ter permissão de fazer algo com qualquer coisa já que o indivíduo precisaria do consentimento de todos os "atrasados" antes do indivíduo sequer chegar a fazer o que queria fazer. Nem nós, nem nossos antepassados, nem nossos descendentes poderíamos fazer algo ou sobreviveríamos se quiséssemos seguir esta regra. Para que qualquer pessoa — no passado, presente ou futuro — possa argumentar qualquer coisa deve ser possível sobreviver, antes e agora, e para que isso ocorra os direitos de propriedade não podem ser concebidos eternos e sem especificação quanto ao número de pessoas envolvidas. Pelo contrário, os direitos de propriedade devem ser pensados como originários de um resultado específico de indivíduos agindo em pontos definidos no tempo. Caso contrário, seria impossível que alguém falasse algo em um ponto definido no tempo e outro indivíduo conseguisse responder. Simplesmente dizer que a regra primeiro-usuário-primeiro-proprietário do libertarianismo pode ser ignorada ou é injustificada implica em uma contradição, para que alguém possa dizer isso é necessário pressupor a existência desse alguém como uma unidade independente de tomada de decisões em um determinado ponto no tempo.

Finalmente, agir e fazer proposições também seria impossível se as coisas adquiridas através de apropriação original não fossem definidas em termos físicos objetivos (e se, correspondentemente, agressão não fosse definida como uma invasão da integridade física da propriedade de outra pessoa), mas em termos de valores e avaliações subjetivas. Enquanto cada pessoa pode ter controle sobre suas ações no que diz respeito a causar a mudança da integridade física de alguém, o controle sobre as ações de outros no que diz respeito aos valores da propriedade de alguém reside com as outras pessoas e suas avaliações. Seria preciso interrogar e chegar a um acordo com a população do mundo todo para ter certeza de que a ação planejada de alguém não mudaria a avaliação de outra pessoa sobre sua propriedade. Certamente, todos estariam mortos há um bom tempo antes que isso fosse concretizado. Além disso, a ideia que os valores da propriedade devem ser protegidos é argumentativamente indefensável, mesmo para argumentar deve ser pressuposto que ações devem ser permitidas antes de qualquer acordo real. (Se não fossem, um indivíduo não poderia sequer fazer esta proposta.) Se eles são permitidos, no entanto, isso só é possível por causa das fronteiras objetivas da propriedade, ou seja, as fronteiras que cada pessoa pode reconhecer como tal por si mesmo sem ter que concordar primeiro com alguém em relação a um sistema de valores e avaliações.

Por estar vivo e formular qualquer proposta, um indivíduo demonstra que qualquer ética exceto a ética libertária de propriedade privada é inválida. Se não fosse assim, e "atrasados" tivessem reivindicações legítimas à coisas ou coisas já apropriadas fossem definidas em termos subjetivos, ninguém poderia possivelmente sobreviver como uma unidade de decisão fisicamente independente em qualquer instante no tempo. Portanto, ninguém jamais poderia dar origem a qualquer proposição dita válida.

Isso conclui minha justificativa apriorística da ética de propriedade privada. Alguns comentários sobre um tópico já abordado anteriormente, a relação entre esta prova "praxeológica" do libertarianismo, a utilitarista e a posição de direitos naturais, completará a discussão.

No que tange a posição utilitarista, a prova contém sua refutação final. Se demonstra que para simplesmente propor a posição utilitária, o direito de controle exclusivo sobre o próprio corpo e os bens de apropriação original já devem ser pressupostos válidos. Mais especificamente, no que se refere ao aspecto consequencialista do libertarianismo, a prova mostra sua impossibilidade praxeológica: a atribuição de direitos de controle exclusivo não podem ser dependentes de certos resultados. Um indivíduo nunca poderia agir e propor alguma coisa, a menos que os direitos de propriedade privada existiam antes de um resultado posterior. Uma ética consequencialista é um absurdo praxeológico. Qualquer ética deve preferivelmente ser apriorística ou instantânea para que seja possível que um possa agir aqui e agora e propor isso ou aquilo ao invés de ter que suspender sua ação até mais tarde. Ninguém está defendendo que uma ética de esperar-para-o-resultado estaria por perto para dizer qualquer coisa se ele levasse a sério o seu próprio conselho. Além disso, na medida em que os proponentes utilitaristas ainda estiverem por perto, eles demonstram através de suas ações que sua doutrina consequencialista é e deve ser considerada como falsa. Agir e fazer proposições necessita de direitos de propriedade privada no mesmo instante e não pode esperar para que eles sejam atribuídos posteriormente.

No que diz respeito à posição dos direitos naturais, a prova praxeológica, geralmente favorável à posição anterior no que tange a possibilidade de uma ética racional e está em total concordância com as conclusões alcançadas nessa tradição (especificamente, por Murray N. Rothbard), tem pelo menos duas vantagens diferentes. Por um lado, tem sido uma discussão comum com a posição de direitos naturais, mesmo por parte dos, de certo modo, simpáticos observadores, que o conceito de natureza humana é muito difuso para permitir a derivação de um determinado conjunto de regras de conduta. A abordagem praxeológica resolve este problema, reconhecendo que não é o amplo conceito de natureza humana, mas o mais específico de trocas proposicionais e argumentação que deve servir como ponto de partida na derivação de uma ética. Além disso, existe uma justificativa a priori para esta escolha, na medida em que, como o problema de verdadeiro e falso, de certo e errado, não surge independente de trocas proposicionais. Ninguém, então, possivelmente poderia desafiar tal ponto de partida sem contradição. Finalmente, é a argumentação que requer o reconhecimento da propriedade privada, portanto, um desafio argumentativo da validade da ética da propriedade privada é praxeologicamente impossível.

Em segundo lugar, há uma lacuna lógica entre declarações de "ser" e "dever" que os defensores de direitos naturais falharam em ligar com êxito — exceto para avançar algumas observações críticas gerais sobre a validade final da dicotomia fato-valor. Aqui a prova praxeológica do libertarianismo tem a vantagem de oferecer uma justificativa completamente livre de valor da propriedade privada. Ela permanece inteiramente no Reino das declarações de ser e nunca tenta derivar um "dever" de um "ser". A estrutura do argumento é este: (a) justificação é justificação proposicional — declaração de fato verdadeira a priori; (b) a argumentação pressupõe a propriedade sobre o próprio corpo e o princípio de apropriação original — declaração de fato verdadeira a priori; e (c) então, nenhum desvio dessa ética pode ser justificado argumentativamente — declaração de fato verdadeira a priori. A prova também oferece a chave para uma compreensão da natureza da dicotomia fato-valor: declarações de dever não podem ser derivadas de declarações de ser. Eles pertencem a diferentes reinos lógicos. Também é evidente, no entanto, que não se pode sequer alegar que há fatos e valores se não existirem trocas proposicionais, e que esta prática de trocas proposicionais por sua vez pressupõe a aceitação da ética da propriedade privada como válida. Em outras palavras, cognição e busca pela verdade como tal tem uma fundação normativa, e a fundação normativa em que a cognição e a verdade residem é o reconhecimento dos direitos de propriedade privada.



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